quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

MARANHÃO 66 E TERRA EM TRANSE

Glauber Rocha foi um cineasta do cinema novo que produziu no filme Maranhão 66, onde registrou a posse de José Sarney como governador, num curta metragem em que é possível discutir aspectos políticos e sociais através de um grotesco alegórico. É possível ainda, relacionar o documentário Maranhão 66 com o filme Terra em Transe.
O novo governo prometia adotar um programa liberal de moralização dos costumes políticos e de progresso com justiça social, com o advento um Maranhão Novo. A posse ocorreu em plena temporada de carnaval, contando uma programação variada, começando com uma salva de foguetes à zero hora, em frente à residência da família Sarney, significando que “a partir daquele instante uma nova era será contada para o Maranhão”.2 A queima de fogos deu início ao “Carnaval popular”, com a multidão a cantar o jingle de campanha, “Meu voto é minha lei, para governador José Sarney”, em ritmo de samba.3 Os eventos da festa “cívico-popular” foram minuciosamente planejados pela Comissão Central dos Festejos, composta por comitês de bairro, sindicatos, governo estadual, prefeitura de São Luís, delegações do interior. Visando a assegurar uma maciça participação, foram utilizados vários artifícios: ponto facultativo nas repartições estaduais e feriado municipal. Em nota oficial, a Associação Comercial do Maranhão conclamou as “classes produtoras” (o comércio, a indústria e os bancos) a suspender suas atividades no dia 31. Ademais, os bondes, principal meio de transporte coletivo, circularam de graça durante todo o “Dia da Independência”.
Encontro de um líder com o povo. O ponto culminante das festividades foi a solenidade de transmissão do cargo, no Palácio dos Leões, seguida de comício na Avenida Pedro II, em que, durante cerca de 30 minutos, o governador discursou em rede de rádio e TV, “debaixo de verdadeiro bombardeio de foguetes e ao som de tambores, das Escolas de Samba, e das palmas da multidão incalculável, que lotava a referida avenida”.
A vitória de José Sarney no pleito de outubro de 1965 esteve intimamente associada aos rearranjos promovidos pelo regime militar nas estruturas de poder da federação. Este é um aspecto muitas vezes negligenciado nas análises do autoritarismo militar: seu impacto quanto à reorganização dos sistemas de poder nos estados, pois, paralelamente à brutal repressão, o regime buscou liquidar os alicerces de sustentação dos partidos dominantes no período “populista” (PSD e PTB), fortalecendo os setores confiáveis da ala civil do golpe, a UDN.
o golpe produziu efeitos em três direções na política maranhense. Em primeiro lugar, o regime militar buscou reprimir as diversas iniciativas de mobilização social que haviam florescido no pré-1964. No campo, com destaque para o Vale do Pindaré, os trabalhadores rurais organizavam-se na luta contra a grilagem e a invasão das lavouras pelo gado, defendendo a reforma agrária. Foram criados inúmeros sindicatos de lavradores, bem como a Associação dos Trabalhadores Agrícolas do Maranhão (Atam), sob a influência do PCB. Além disso, já se esboçava a existência de um setor progressista da Igreja Católica, precursor da Teologia da Libertação, caso do padre Alípio de Freitas (defensor da palavra de ordem das Ligas Camponesas – “Reforma Agrária na lei ou na marra”), do Movimento de Educação de Base (MEB) e da catequese avançada conduzida por Dom Antônio Fragoso (bispo auxiliar de São Luís).11 Em São Luís, cresciam as mobilizações de estudantes, trabalhadores e intelectuais, as quais culminaram na fundação, em fins de 1963, da Frente de Mobilização Popular (FMP), órgão de coordenação da luta pelas Reformas de Base e pela constituição de um governo nacionalista. A FMP teve uma composição bastante diversificada, congregando entidades estudantis (União Maranhense de Estudantes), lavradores (Atam), trabalhadores urbanos (sindicatos, Pacto de Unidade Sindical, CGT), associações de bairro e o Grupo Parlamentar Nacionalista.
A forte repressão atingiu em cheio todos estes setores. Passeatas e manifestações públicas foram proibidas. O Jornal do Povo (porta-voz do nacionalismo reformista) e a Tribuna do Povo (do PCB) foram fechados. Dirigentes comunistas, líderes sindicais e outros considerados “subversivos” foram presos (a médica Maria Aragão e o poeta Bandeira Tribuzi, dentre outros). Com a edição do Ato Institucional nº 1 (AI-1), o deputado federal Neiva Moreira (PSP) perdeu o mandato, bem como os direitos políticos. O parlamentar ainda foi preso, partindo para o exílio (julho de 1964) e somente retornando após a anistia, em 1979. Mais realista que o rei, a Assembléia Legislativa aprovou uma resolução declarando a perda dos mandatos de alguns deputados estaduais e suplentes, em razão do “exercício de atividades comunistas” e da “prática de atos subversivos”.12 Por conseguinte, os setores mais radicais das Oposições Coligadas foram expurgados e depurados.
Em segundo lugar, o golpe provocou o acirramento dos conflitos internos do PSD maranhense, aprofundando a crise do vitorianíssimo. Ainda em 1962, um grupo de seis deputados federais abandonou o PSD e ingressou no PTB, na esperança de obter apoio do presidente João Goulart para suas pretensões de conquista do governo estadual (projeto abortado com o golpe). Mas a principal disputa opôs o governador Newton Bello ao senador Victorino Freire, cada qual buscando controlar o Partido e obter do regime militar o beneplácito necessário para eleger o novo governador. Em meio a intrincadas intrigas palacianas, verificou-se a ruptura entre os dois. Assim, Newton Bello lançou a candidatura do prefeito nomeado de São Luiz, Costa Rodrigues (PDC/PL), enquanto a “raposa” apoiou o deputado federal Renato Archer (PTB/PSD), cujo nome havia sido vetado pelo regime. O vitorinismo estava cindido, o que aumentou as chances de vitória das Oposições, possibilitando a diversos coronéis e chefes políticos do interior mudar de lado.
A terceira e decisiva reorientação foi o apoio proporcionado pelo governo do general Castelo Branco à candidatura de José Sarney, segundo a lógica já explicitada de garantir a vitória de grupos favoráveis ao regime. Para concretizar este apoio, foram adotadas medidas como a “intervenção branca” na Justiça Eleitoral e a convocação de tropas para garantir as eleições. Porém, a medida mais significativa, por seu valor simbólico e prático, foi a revisão do eleitorado, quebrando a “Universidade da Fraude” vitorinista. O resultado: a eliminação de mais de 200 mil “fantasmas”, num universo de 497 mil eleitores (um expurgo de cerca de 40% do eleitorado).
Tantas e tão profundas intervenções surtiram os efeitos desejados, propiciando a vitória udenista em 1965: Sarney obteve 121.062 votos (49%), Costa Rodrigues ficou com 68.560 votos (27,7%), Renato Archer obteve 36.103 (14,6%), e houve ainda 21.431 votos em branco ou nulos (8,7%). Dava-se mais um salto espetacular do “canguru” Sarney, transmutando-se de nacionalista e reformista no governo João Goulart a subordinado civil do regime autoritário. Em discurso agradecido, o governador recém-empossado enfatizou que “foi preciso que o governo federal iniciasse novos métodos para que a oligarquia do Maranhão ruísse, fosse abaixo, desmoronasse”. Complementando que a vitória das Oposições Coligadas teria sido impossível sem “a determinação do governo do marechal Castelo Branco, no sentido de que as eleições fossem livres e que fossem limpas”.13 Em outra oportunidade, José Sarney enumerou algumas das “vitórias da Revolução de 31 de março”, destacando a extinção dos partidos políticos.
Nesse sentido, a ditatura seria um “antídoto” eficaz ao autoritarismo político dominante no Maranhão (da Ocupação de Victorino Freire), conformando e produzindo uma singular “democratização pela via autoritária”. A bandeira da “moralização dos costumes políticos” foi empunhada pela ditadura, que, “do alto”, determinou a mudança das regras do jogo, reestruturando o sistema de dominação e provocando a alternância de grupos no poder estadual. Uma “vitória outorgada”, nas palavras de José de Ribamar Caldeira, para quem a eleição de Sarney representou “apenas o referendum da sociedade civil do Estado para a consecução dos objetivos do governo central”, quais sejam, a “necessidade de inserção do Maranhão dentro do projeto político estabelecido pela Revolução de 1964”, através do “afastamento dos centros de decisão política de alguns Estados, de alguns coronéis tradicionais do PSD”.15 Portanto, vitória eleitoral e consagração popular sob tutela militar, num paradoxal processo de “libertação pelo alto”, em que o desejo oposicionista de uma intervenção federal “saneadora” finalmente se concretizou, mas ao custo de reestruturar (e não romper) o sistema oligárquico e patrimonial de dominação (com o que discordamos frontalmente de todos aqueles que apontam uma descontinuidade na política maranhense, com uma suposta ruptura das estruturas políticas básicas no pós-64).

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