Glauber Rocha foi um cineasta do cinema novo que produziu no
filme Maranhão 66, onde registrou a posse de José Sarney como governador, num
curta metragem em que é possível discutir aspectos políticos e sociais através
de um grotesco alegórico. É possível ainda, relacionar o documentário Maranhão
66 com o filme Terra em Transe.
O novo governo prometia adotar um programa liberal de
moralização dos costumes políticos e de progresso com justiça social, com o
advento um Maranhão Novo. A posse ocorreu em plena temporada de carnaval,
contando uma programação variada, começando com uma salva de foguetes à zero
hora, em frente à residência da família Sarney, significando que “a partir
daquele instante uma nova era será contada para o Maranhão”.2 A queima de fogos
deu início ao “Carnaval popular”, com a multidão a cantar o jingle de campanha,
“Meu voto é minha lei, para governador José Sarney”, em ritmo de samba.3 Os
eventos da festa “cívico-popular” foram minuciosamente planejados pela Comissão
Central dos Festejos, composta por comitês de bairro, sindicatos, governo
estadual, prefeitura de São Luís, delegações do interior. Visando a assegurar
uma maciça participação, foram utilizados vários artifícios: ponto facultativo
nas repartições estaduais e feriado municipal. Em nota oficial, a Associação
Comercial do Maranhão conclamou as “classes produtoras” (o comércio, a
indústria e os bancos) a suspender suas atividades no dia 31. Ademais, os
bondes, principal meio de transporte coletivo, circularam de graça durante todo
o “Dia da Independência”.
Encontro de um líder com o povo. O ponto culminante das
festividades foi a solenidade de transmissão do cargo, no Palácio dos Leões,
seguida de comício na Avenida Pedro II, em que, durante cerca de 30 minutos, o
governador discursou em rede de rádio e TV, “debaixo de verdadeiro bombardeio
de foguetes e ao som de tambores, das Escolas de Samba, e das palmas da
multidão incalculável, que lotava a referida avenida”.
A vitória de José Sarney no pleito de outubro de 1965 esteve
intimamente associada aos rearranjos promovidos pelo regime militar nas
estruturas de poder da federação. Este é um aspecto muitas vezes negligenciado
nas análises do autoritarismo militar: seu impacto quanto à reorganização dos
sistemas de poder nos estados, pois, paralelamente à brutal repressão, o regime
buscou liquidar os alicerces de sustentação dos partidos dominantes no período
“populista” (PSD e PTB), fortalecendo os setores confiáveis da ala civil do
golpe, a UDN.
o golpe produziu efeitos em três direções na política
maranhense. Em primeiro lugar, o regime militar buscou reprimir as diversas
iniciativas de mobilização social que haviam florescido no pré-1964. No campo,
com destaque para o Vale do Pindaré, os trabalhadores rurais organizavam-se na
luta contra a grilagem e a invasão das lavouras pelo gado, defendendo a reforma
agrária. Foram criados inúmeros sindicatos de lavradores, bem como a Associação
dos Trabalhadores Agrícolas do Maranhão (Atam), sob a influência do PCB. Além
disso, já se esboçava a existência de um setor progressista da Igreja Católica,
precursor da Teologia da Libertação, caso do padre Alípio de Freitas (defensor
da palavra de ordem das Ligas Camponesas – “Reforma Agrária na lei ou na
marra”), do Movimento de Educação de Base (MEB) e da catequese avançada
conduzida por Dom Antônio Fragoso (bispo auxiliar de São Luís).11 Em São Luís,
cresciam as mobilizações de estudantes, trabalhadores e intelectuais, as quais
culminaram na fundação, em fins de 1963, da Frente de Mobilização Popular
(FMP), órgão de coordenação da luta pelas Reformas de Base e pela constituição
de um governo nacionalista. A FMP teve uma composição bastante diversificada,
congregando entidades estudantis (União Maranhense de Estudantes), lavradores
(Atam), trabalhadores urbanos (sindicatos, Pacto de Unidade Sindical, CGT),
associações de bairro e o Grupo Parlamentar Nacionalista.
A forte repressão atingiu em cheio todos estes setores.
Passeatas e manifestações públicas foram proibidas. O Jornal do Povo (porta-voz
do nacionalismo reformista) e a Tribuna do Povo (do PCB) foram fechados.
Dirigentes comunistas, líderes sindicais e outros considerados “subversivos”
foram presos (a médica Maria Aragão e o poeta Bandeira Tribuzi, dentre outros).
Com a edição do Ato Institucional nº 1 (AI-1), o deputado federal Neiva Moreira
(PSP) perdeu o mandato, bem como os direitos políticos. O parlamentar ainda foi
preso, partindo para o exílio (julho de 1964) e somente retornando após a
anistia, em 1979. Mais realista que o rei, a Assembléia Legislativa aprovou uma
resolução declarando a perda dos mandatos de alguns deputados estaduais e
suplentes, em razão do “exercício de atividades comunistas” e da “prática de
atos subversivos”.12 Por conseguinte, os setores mais radicais das Oposições
Coligadas foram expurgados e depurados.
Em segundo lugar, o golpe provocou o acirramento dos
conflitos internos do PSD maranhense, aprofundando a crise do vitorianíssimo.
Ainda em 1962, um grupo de seis deputados federais abandonou o PSD e ingressou
no PTB, na esperança de obter apoio do presidente João Goulart para suas
pretensões de conquista do governo estadual (projeto abortado com o golpe). Mas
a principal disputa opôs o governador Newton Bello ao senador Victorino Freire,
cada qual buscando controlar o Partido e obter do regime militar o beneplácito
necessário para eleger o novo governador. Em meio a intrincadas intrigas
palacianas, verificou-se a ruptura entre os dois. Assim, Newton Bello lançou a
candidatura do prefeito nomeado de São Luiz, Costa Rodrigues (PDC/PL), enquanto
a “raposa” apoiou o deputado federal Renato Archer (PTB/PSD), cujo nome havia
sido vetado pelo regime. O vitorinismo estava cindido, o que aumentou as
chances de vitória das Oposições, possibilitando a diversos coronéis e chefes
políticos do interior mudar de lado.
A terceira e decisiva reorientação foi o apoio proporcionado
pelo governo do general Castelo Branco à candidatura de José Sarney, segundo a
lógica já explicitada de garantir a vitória de grupos favoráveis ao regime.
Para concretizar este apoio, foram adotadas medidas como a “intervenção branca”
na Justiça Eleitoral e a convocação de tropas para garantir as eleições. Porém,
a medida mais significativa, por seu valor simbólico e prático, foi a revisão
do eleitorado, quebrando a “Universidade da Fraude” vitorinista. O resultado: a
eliminação de mais de 200 mil “fantasmas”, num universo de 497 mil eleitores
(um expurgo de cerca de 40% do eleitorado).
Tantas e tão profundas intervenções surtiram os efeitos
desejados, propiciando a vitória udenista em 1965: Sarney obteve 121.062 votos
(49%), Costa Rodrigues ficou com 68.560 votos (27,7%), Renato Archer obteve
36.103 (14,6%), e houve ainda 21.431 votos em branco ou nulos (8,7%). Dava-se
mais um salto espetacular do “canguru” Sarney, transmutando-se de nacionalista
e reformista no governo João Goulart a subordinado civil do regime autoritário.
Em discurso agradecido, o governador recém-empossado enfatizou que “foi preciso
que o governo federal iniciasse novos métodos para que a oligarquia do Maranhão
ruísse, fosse abaixo, desmoronasse”. Complementando que a vitória das Oposições
Coligadas teria sido impossível sem “a determinação do governo do marechal
Castelo Branco, no sentido de que as eleições fossem livres e que fossem
limpas”.13 Em outra oportunidade, José Sarney enumerou algumas das “vitórias da
Revolução de 31 de março”, destacando a extinção dos partidos políticos.
Nesse sentido, a ditatura seria um “antídoto” eficaz ao
autoritarismo político dominante no Maranhão (da Ocupação de Victorino Freire),
conformando e produzindo uma singular “democratização pela via autoritária”. A
bandeira da “moralização dos costumes políticos” foi empunhada pela ditadura,
que, “do alto”, determinou a mudança das regras do jogo, reestruturando o
sistema de dominação e provocando a alternância de grupos no poder estadual.
Uma “vitória outorgada”, nas palavras de José de Ribamar Caldeira, para quem a
eleição de Sarney representou “apenas o referendum da sociedade civil do Estado
para a consecução dos objetivos do governo central”, quais sejam, a
“necessidade de inserção do Maranhão dentro do projeto político estabelecido
pela Revolução de 1964”, através do “afastamento dos centros de decisão
política de alguns Estados, de alguns coronéis tradicionais do PSD”.15
Portanto, vitória eleitoral e consagração popular sob tutela militar, num
paradoxal processo de “libertação pelo alto”, em que o desejo oposicionista de
uma intervenção federal “saneadora” finalmente se concretizou, mas ao custo de
reestruturar (e não romper) o sistema oligárquico e patrimonial de dominação
(com o que discordamos frontalmente de todos aqueles que apontam uma
descontinuidade na política maranhense, com uma suposta ruptura das estruturas
políticas básicas no pós-64).
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