No catálogo da exposição A Arte Bruta Preferida às Artes Culturais, realizada em 1949, em que são mostradas 200 obras de 60 artistas autodidatas, Jean Dubuffet (1901-1985) define o sentido da expressão por ele cunhada quatro anos antes. Em suas palavras: "Entendemos pelo termo as obras executadas por pessoas alheias à cultura artística, para as quais o mimetismo contrariamente ao que ocorre com os intelectuais desempenha um papel menor, de modo que seus autores tiram tudo (temas, escolha de materiais, meios de transposição, ritmo, modos de escrita etc.) de suas próprias fontes e não dos decalques da arte clássica ou da arte da moda. Assistimos à operação pura, bruta, reinventada em todas as fases por seu autor, a partir exclusivamente de seus próprios impulsos". Obras feitas com base na exploração dos territórios da subjetividade e da imaginação criadora, por pessoas à margem da tradição e do sistema artístico: solitários, crianças, pacientes de hospitais psiquiátricos etc. São justamente esses trabalhos que o termo art brüt visa descrever, na tentativa de rechaçar o caráter seletivo das artes e de valorizar a manifestação expressiva bruta, espontânea e imediata de autodidatas.
A noção surge em 1945 a partir de viagens empreendidas por Dubuffet pela França e Suíça para pesquisar novas formas de arte, distantes da produção oficial, em um momento em que ele próprio retoma a atividade de pintor, abandonada por vários anos. Em 1944, instalado em Paris, faz sua primeira exposição na galeria René Drouin, espaço que acolhe o artista, e a arte bruta, em mais de uma ocasião. É justamente no subsolo dessa galeria que o pintor cria, em 1947, o Foyer de l'Art Brüt. Em 1948, o foyer é transferido para um espaço cedido pelo editor Gaston Gallimard, e se transforma na Compagnie d'Art Brut [Companhia de Arte Bruta], cujos membros-fundadores, além de Dubuffet, são André Breton (1896-1966), Jean Paulham, Charles Ratton, Henri-Pierre Roché, Michel Tapié e Edmond Bomsel. Dois anos depois, as atividades da companhia são suspensas e Dubuffet se empenha em obter um espaço para sua coleção de arte bruta, provisoriamente nos Estados Unidos. A compra de um imóvel em Paris, em 1962, sede da atual Fondation Jean Dubuffet [Fundação Jean Dubuffet], garante a volta do conjunto de mais de 1.200 obras à capital francesa e a retomada das atividades da Companhia de Arte Bruta (agora um centro de estudos). Mas é somente em 1972 que o pintor doa sua coleção à municipalidade de Lausanne, na Suíça, que irá abrigá-la no Château de Beaulieu, aberto ao público em 1976.
A coleção de arte bruta organizada por Dubuffet ao longo dos anos não apresenta nenhuma obra do artista, o que não quer dizer que sua própria produção não tenha sido tocada por essas pesquisas. Em trabalhos de diferentes períodos, Dubuffet evoca - nos coloridos acentuados, nas linhas deliberadamente "mal-acabadas", que lembram graffitis, e nas deformações - as contribuições da arte bruta, ainda que sua obra seja também, é claro, devedora das tradições artísticas, dialogando de perto com a produção de seu tempo. As preocupações de Dubuffet com a arte bruta ligam-se ao contexto da arte européia após 1945 e ao chamado informalismo. A arte informal expressa uma clara reação ao contexto de crise instaurado no pós-guerra, que, do ponto de vista das artes, aparece como a consciência da perda da hegemonia cultural e artística do continente europeu diante da emergência de novos centros. Observa-se aí uma descrença em relação à racionalidade da civilização tecnológica, celebrada por algumas vertentes das vanguardas do começo do século XX. As filosofias da crise, em especial o existencialismo de Sartre, dão o tom da época no plano das idéias, reverberando nas artes de modo geral. A superação da forma coloca-se como uma tentativa de ultrapassagem dos conteúdos realistas e dos formalismos geométricos, alimentados pelo cubismo. Recusa-se também a figuração nos moldes do realismo socialista e o projeto construtivo da Bauhaus. Do ponto de vista de suas inspirações, a arte informal beneficia-se do surrealismo (sobretudo pela valorização do inconsciente), do dadaísmo (em função da defesa do caráter irracionalista da arte), do expressionismo (que toma a imaginação como expressão direta do espírito do artista).
Dubuffet trabalha desde o início com grande liberdade técnica com base em materiais diversos. A ênfase recai sobre a matéria bruta, desde os trabalhos da década de 1940 (Dhôtel Nuance d'Abricot, 1947; Métafysix, 1950) até as Materealogias e Texturologias produzidas entre 1957 e 1960, que se caracterizam, como o próprio título indica, pelas texturas experimentadas com cores e materiais diversos, e que apontam na direção da recusa da expressão e da representação. Na seqüência, o artista caminha para a feitura de assemblages, pela incorporação de materiais não-artísticos às telas: areia, gesso, asas de borboleta, resíduo industrial etc. Esses experimentos com a matéria podem ser também observados em obras do francês Jean Fautrier (1898-1964), do italiano Alberto Burri (1915-1995) e do catalão Antoni Tàpies (1923-2012). Este último realiza, nos anos 1940 e 1950, trabalhos sensíveis à arte bruta. Em telas como ZOOM, 1946, por exemplo, o artista apela a certa primitividade, diferente do uso que o cubismo faz da arte primitiva, e mais próxima de um primitivismo visceral da arte infantil e da chamada arte incomum. De qualquer modo, entre todos os nomes é Dubuffet aquele mais diretamente ligado à idéia de arte bruta como mentor e teórico - que ele faz questão de distinguir da chamada "arte psiquiátrica" e também da arte naïf. Esta, diz ele, mantém-se como uma corrente no interior da pintura, enquanto na arte bruta os artistas criam livremente, exclusivamente para uso pessoal.
Na arte brasileira não é possível encontrar seguidores das pesquisas de Dubuffet, mas os analistas localizam na arte incomum - por exemplo, na produção dos artistas ligados ao Museu de Imagens do Inconsciente e da Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri, - uma expressão da art brüt entre nós. Embora os termos arte incomum e arte bruta não se confundam, eles aparecem invariavelmente relacionados nas análises, como indica o catálogo da 16ª Bienal Internacional de São Paulo, 1981, que tem uma ala dedicada à produção dos "doentes mentais ou indivíduos desatados dos contextos normais de visualidade". A própria coleção de Dubuffet, em Lausanne, conta com cerca de 40% de trabalhos realizados por pacientes de hospitais psiquiátricos.
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